Difusão do consumo produtivo na economia urbana de Mossoró (RN)

O Brasil vem passando por um conjunto significativo de mudanças que refletem, em grande medida, a redefinição da divisão internacional do trabalho no período atual e, consequentemente, o modo como parcelas significativas do território brasileiro e suas cidades mais importantes têm seus papéis alterados neste processo.

A pesquisa realizada por Camila Dutra dos Santos, sob orientação de Denise Elias, traz contribuições importantes para compreender essas mudanças, tomando-se como referência os circuitos espaciais relativos à extração do sal e do petróleo, bem como aqueles atinentes à fruticultura. O foco é a cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, e o recorte analítico principal recai sobre o consumo produtivo associado a esses circuitos.

O texto, objeto desta resenha, foi apresentado e aprovado como Dissertação de Mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual do Ceará. Ele oferece elementos para se avaliar em que medida cidades médias que desempenhavam papéis estritamente regionais, ampliam suas escalas de articulação geográfica, à medida que se integram ou são integradas por circuitos espaciais de maior alcance espacial, comandados por interesses que desejam se impor como hegemônicos, os quais encontram em determinadas parcelas do território as condições necessárias e adequadas, em dado momento histórico, à sua realização.

Para o desenvolvimento de sua análise, a autora escolheu os seguintes temas: reestruturação produtiva, difusão do comércio e dos serviços especializados, urbanização e produção do espaço urbano. Essa seleção possibilitou-lhe, tendo em vista o eixo central de desenvolvimento da dissertação e, sobretudo, as atividades estudadas, elaborar uma dissertação que se inscreve na interface entre a Geografia Econômica, a Geografia Urbana e a Geografia Agrária. Tendo em vista as escalas de realização das dinâmicas estudadas, o estudo do local e do regional, articulados às escalas nacional e internacional, permite-nos afirmar que a dissertação se constitui, igualmente, em contribuição para se compreender como se conformam, no período atual, as regiões e as redes urbanas.

O texto revela a realização de um bom exercício de articulação entre o teórico e o empírico, bem como entre o rural e o urbano, expressos em suas relações e articulações entre a cidade e o campo.

A autora foi capaz de demonstrar que se dedicou ao estudo dos principais autores que oferecem elementos para a análise, selecionando os conceitos mais importantes para efetuar seu construto explicativo. Ao mesmo tempo, esses conceitos só têm sentido porque a realização de um amplo trabalho de campo orientou sua seleção e a relação entre eles.

O valor da análise realizada não está, apenas, na contribuição oferecida para entender Mossoró e os três circuitos espaciais estudados, mas encontra-se, também, no fato de que a pesquisa efetuada insere-se no projeto maior da Rede de Pesquisadores sobre Cidades Médias (ReCiMe), denominado “Cidades médias: agentes econômicos e reestruturação urbana e regional”. Isso significa que tanto a dissertação beneficia-se da pesquisa maior, como contribui para que as análises dela resultantes possam apoiar-se em estudos, cuja verticalizações analíticas trazem à luz especificidades que tratam do singular e oferecem base para se compreender as particularidades das cidades médias e de seus papéis no Brasil contemporâneo.

A dissertação está estruturada em quatro capítulos, precedidos de uma Introdução e sucedidos por Considerações Finais e Referências Bibliográficas. Apêndices e Anexos completam o volume.

A Introdução é uma secção muito bem elaborada na dissertação. Ela contém os elementos essenciais para se compreender os fundamentos do estudo, seus recortes, seus conceitos centrais e, sobretudo, ao contrário de outros trabalhos desse tipo, nela não se adiantam as conclusões a que a autora chegará, após desenvolver sua análise.

O capítulo 1 é intitulado “Reestruturação produtiva, desconcentração espacial e redefinições no urbano”. Ele está subdividido em três subcapítulos, nos quais são tratadas as relações entre reestruturação produtiva e desconcentração espacial, entre consumo produtivo e centralidade das atividades terciárias e entre transformações e novas dinâmicas na economia urbana de Mossoró.

O foco do capítulo 2 é a região salineira e seus circuitos espaciais de produção. A análise inicia-se, no subcapítulo 2.1, pelas explicações necessárias à compreensão das dinâmicas da economia salineira e suas transformações recentes. A difusão das atividades comerciais e das atividades de serviços associadas à moderna produção do sal é o objeto, respectivamente, dos subcapítulos 2.2 e 2.3.

O mais extenso e importante capítulo da dissertação é o terceiro, que está voltado à compreensão de Mossoró e sua região, como o novo espaço luminoso do agronegócio de frutas tropicais. Ele se inicia com o enfoque do que a autora denominou de “nova região produtiva agrícola”, descrevendo as transformações recentes observadas no Baixo Açu e no Baixo Jaguaribe. O tratamento da produção de frutas para o mercado global é o objeto do subcapítulo 3.2. O papel de Mossoró como centro regional distribuidor de insumos constituindo o consumo produtivo agrícola é tratado no subcapítulo seguinte, enquanto, no 3.4, a autora disserta sobre os fixos e fluxos associados ao transporte de meios e produtos associados a esse circuito espacial. Nos subcapítulos 3.5 a 3.8 as mudanças ocorridas no espaço urbano de Mossoró como condição e conseqüência do desenvolvimento da fruticultura são analisadas, considerando-se: consultorias agrícolas, ensino pesquisa e desenvolvimento, serviços bancários e os ramos de hospedagem e turismo de negócios e eventos.

O quarto capítulo é dedicado à compreensão das metamorfoses no novo território do petróleo. Ele tem início com a descrição da Bacia Potiguar como um “território do petróleo”, no subcapítulo 4.1. Em seguida, há um conjunto significativo de explicações sobre o processo produtivo do petróleo, que ajudam a informar o leitor sobre condições para sua realização. Neste subcapítulo 4.2., a abordagem técnica prevalece sobre a geográfica, o que indicaria que seria mais pertinente a sua inserção como um apêndice da dissertação. Os subcapítulos 4.3 e 4.4 contêm o fulcro da análise, pois neles são priorizados os enfoques da ação das empresas e do perfil das atividades que representam a difusão do consumo produtivo do petróleo, bem como são tratadas as novas dinâmicas do mercado de trabalho, mostrando o reverso da moeda, adotando-se uma metáfora, para fazermos referência à evolução do emprego atinente a esse circuito, bem como à precarização do trabalho que a ele se associa.

Nas Considerações Finais, a autora vai além do resumo das idéias contidas na dissertação, o que é bastante usual em trabalhos de pós-graduação do nível de Mestrado. Contudo, ela não chega a alcançar, plenamente, uma síntese à altura da pesquisa e da análise desenvolvida. É nesta secção do texto, que a influência da teoria elaborada por Milton Santos aparece com maior evidência, ainda que ela esteja presente, explícita e subliminarmente, em toda a dissertação. Esta relevância maior aos conceitos tomados da teoria que orientaram a linha de raciocínio da autora é plenamente justificável, uma vez que, ao se esforçar para chegar às duas conclusões, ela mostra a força explicativa desses conceitos e, sobretudo, sua pertinência e adequação para compreender as dinâmicas estudadas.

No Apêndice A, o leitor encontra uma descrição bem elaborada da metodologia desenvolvida, apresentada de forma sucinta na Introdução. Nos Apêndices B, C, D, E e F estão reunidos roteiros de entrevistas e questionários, quadros a partir dos quais foram organizados os trabalhos de campo, bem como parte dos dados e informações obtidos, sistematizados de forma mais detalhada, pormenorizando-se o que está na dissertação em quadros e tabelas de sínteses. Assim, esses apêndices têm grande valia, do ponto de vista metodológico, porque, de um lado, mostram ao leitor a acuidade dos procedimentos e, de outro, ajudam a orientar outros pesquisadores que trabalham com o mesmo tema ou têm essa cidade como objeto de pesquisa.

Nos Anexos, há dados sobre as principais empresas e principais produtos exportados, tomando-se como referência Mossoró.

Como todos os trabalhos científicos, sobretudo no campo das Ciências Humanas e Sociais, este é passível de críticas e gera novas questões. Entretanto, é fundamental esclarecer ao leitor dessa resenha que, nesse caso, a problematização que emerge é decorrência da qualidade do texto e do esforço bem sucedido da autora em tratar uma temática que se inscreve na interface de múltiplas especializações no campo da Geografia, exigindo conhecimentos básicos da Economia e de outras áreas científicas.

Entre os pontos passíveis de crítica ou ao menos de reflexão, para validá-los ou não, destaco dois.

O primeiro refere-se ao reconhecimento de Mossoró como um espaço luminoso, conceito elaborado por Milton Santos (p.221). A dissertação não deixa dúvidas sobre a importância das mudanças ocorridas, a partir de vetores emanados pelos agentes econômicos e políticos que comandam os circuitos espaciais estudados. No entanto, caberia se pensar em que medida não seria mais adequado ficar com a hipótese aventada também por Camila Dutra, à p. 229, que estamos diante de um espaço iluminado, uma vez que a origem dos comandos e dos capitais que lhes orientam é externa à cidade e à região que ela polariza. Parece evidente que Mossoró poderia ser considerado um espaço luminoso, quando a análise se restringe à escala regional. No entanto, sua ampliação para escalas mais amplas, da nacional a internacional, levam ao enfraquecimento dessa compreensão.

O segundo diz respeito à adoção do conceito de empreendedorismo urbano, tomado na perspectiva desenvolvida por David Harvey, para explicar as alterações vividas pela cidade e nela expressas. Questiono essa aplicação, uma vez que, no decorrer da própria dissertação, é possível verificar que os empreendedores que dirigem seus investimentos a essa região não são oriundos dela, ainda que estabeleçam alianças maiores ou menores com os empreendedores locais e regionais, bem como com seu poder político. Há um dinamismo constatado no fato de que empresários locais, de pequeno e médio porte, tentam adequar-se às novas demandas, geradas pela presença dos grandes agentes econômicos. No entanto, isso não seria suficiente, a meu ver, para aplicar esse conceito já que o papel dos agentes locais não chega a ser protagonista nesse processo.

À parte as questões que levanta, as quais são mais significativas para o debate, do que razão de invalidação da análise desenvolvida, essa dissertação contém múltiplas ideias que poderão e deverão alimentar o debate, estimular a reflexão e oferecer maior conhecimento sobre a Região Nordeste, sobre o Brasil e, sobretudo, sobre as articulações espaciais que redefinem, em múltiplas escalas, a divisão territorial do trabalho. Tais perspectivas parecem-me fundamentais àqueles que se voltam à compreensão da redefinição dos papéis desempenhados pelas cidades que fazem a intermediação entre as grandes e as menores, no âmbito de diversas redes urbanas.

Notas Bibliográficas

SANTOS, Camila Dutra dos. Difusão do consumo produtivo na economia urbana de Mossoró (RN). Fortaleza (CE). 2010. f. Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade Estadual do Ceará.